Vamos conversar?

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domingo, 27 de dezembro de 2020

Aniversário de mãe

 


Dia da Dona Estela


Hoje ela estaria fazendo 84 anos.

São doze anos sem ela…


E o que dizer disso?


Gostaria de tê-la ouvido tocar mais piano. Mas que bom que tenho tantas lembranças dela, sentada ao piano tocando. E que, mesmo parecendo um repertório desconhecido, foi se tornando uma música para mim, tão presente, como se atrelasse a ela, definitivamente. A música clássica. Aquele repertório que passeava em nomes difíceis de pronunciar para uma criança que estava aprendendo a ler.


Gostaria de tê-la ouvido tocar seu violino. Mas esta é uma resposta que nunca vou ter. Porque foi uma pergunta que nunca tentei fazer. E esta paixão dela pela música, através deste instrumento, eu nunca vou decifrar. Porque me faltou este instante. De perguntar para a Dona Estela. De lhe pedir. "Toca uma música no violino?" Ou de lhe oferecer. "Quer ir consertar seu violino, mãe?"


São cenas. Que contrastam e retratam o ser. O estar. O fazer. O piano foi trocado de lugar algumas vezes na casa. Mas de criança, seu lugar fixo foi junto a uma parede de madeira e ele era transformado em lugar do presépio que ela montava todo final de ano com pecinhas de louça que representam cada personagem da cena. 


Já o violino, era um personagem misterioso do qual, sabíamos a existência, em cima do guarda-roupa dela, escondido. Nunca tocado. Era como se fosse uma área proibida de se chegar, se tocar e se perguntar. E nós, crianças mesmo já crescidas, nunca nos atrevemos a perguntar. Disso, me arrependo. Nunca ter lhe perguntado.


Tenho lembranças dela toda atrevida jugando tênis de campo. Com suas saias curtas, próprias deste esporte. Numa época em que só havia ela de mulher. Lembro dela se aventurando na natação

 Na categoria Master, toda orgulhosa, de aprender a nadar sozinha, autodidata, nadando crawl, costas, peito e borboleta. Porreta Dona Estela. Até borboleta!


Tenho lembranças dela começando a vender Rhodia, Avon, Christian Gray. Natura, depois. E umas outras tantas marcas de catálogo, daqueles que vendem de tudo.


Lembro de suas gavetas e prateleiras cheias. De tudo. E toda bagunça que eu não compreendia e achava exagero e bagunça. E hoje, vejo, era ela. Tal qual ela era. Uma infinidade de prateleiras desconexas para os meus olhos. Mas era onde ela se escondia e se encontrava.

Que eu podia querer entendê-la sem ser convidada? Sem me convidar? Sem tentar olhar e saber?


Lembro de uma cozinha nada exemplar. Que servia, mas não era um modelo de casa arrumada. Mas me lembro das minhas irmãs dizendo que ela preferia ficar com a casa meio bagunçada, sem ser um esmero de limpeza, para estar presente com a gente. Ensinando a ler. A escrever no quadro que ficava pendurado na parede da cozinha. Que nos deixava à vontade para brincar de casinha. E não ficava no pé para deixar a casa um brinco. Porque brinco era um verbo vivido por nós, suas filhas.


Lembro de ter vergonha de levar amigas e namorado em casa. Porque achava a casa bagunçada. Mesmo que eu e minha irmã arrumássemos a casa. Não era igual a casa das mães das minhas amigas. Que naquele tempo, eu achava que eram mais bonitas. Mais arrumadas. E, confesso. Melhores que a minha. E hoje vejo a injustiça cometida. Pois a Dona Estela fugia às normas. A regra do que todo mundo fazia. Ela desafiava o termo e o tempo. Atrevia-se a correr mesmo já sendo "velha"! E ela tinha apenas… 50 anos. E eu, com meus vinte e poucos anos, não era capaz de compreender. Por que minha casa era tão diferente das outras? Porque a dona dela não era comum. Destoava bravamente das mulheres que faziam o de sempre. Acordar, limpar, limpar, cumprir o protocolo da dona de casa que se contentava só com isso. Ela, definitivamente, preferia viver fora de casa. Desbravar. Se arriscar. Mesmo que para isso, seu reduzido tempo a fizesse falhar tanto dentro de casa. 


E, hoje, penso. Será mesmo que falhou? Ou foi justa consigo mesma? Em atrever-se a mão cumprir a regra do comum, do "a ser feito" e usar este verbo no tempo "já feito"???


Sim. Se pudesse, teria criticado menos e teria passado mais tempo na sua companhia. Aceitando-a diferente como era. O que a sua doença me ensinou, a tempo, a estar com ela, incondicionalmente. Com pequenos gestos de presença. De massagem nas pernas inchadas, nos pés que minavam água, por causa de um rim em falência.


Teria, com certeza, burlado mais vezes a proibição do doce. Como fiz, tanta vezes, quando eu soube que não haveria mais volta. Que dali pra frente, era uma questão do tempo ser caridoso com a gente e cruel com ela. Que a cada mais tempo presente para a nossa carência egoísta, de não querer perdê-la de perto, mais ela definhava e sofria. E que cada pequeno prazer, mesmo que lhe fosse veneno para o corpo, lhe satisfazia a alma. E, o que é menos bem ou menos mal, quando a morte já bate à porta?


Há males,a gente vai descobrindo, que matam mais que doença. A falta de presença. A falta do toque e do abraço. Não morre do coração, mas morre de depressão. Não morre deste mal desta pandemia, mas morre de solidão. Não morre de infarto, mas morre de névoas do coração. Coração solitário, coração que definha por descobrir a contragosto, que a linha de chegada está chegando.


Vejo o quanto somos injustos com o outro. Porque o nosso padrão do certo, bonito, necessário, útil, não é exatamente o mesmo. E desdenhamos. Não compreendemos. Não aceitamos. E, isso, se percebido a tempo, pode ser um carinho necessário a ser recebido. Porque hoje, me vejo no papel invertido. Me achando jovenzinha, porque me cuido. Sou ativa fisicamente, intelectualmente e emocionalmente. Mas tenho meus cinquenta e quatro anos. E tem mais gente pra trás de mim, do que pra fente. E eu fujo à regra, tal qual a minha mãe. Guardo coisas importantes pra mim. Exagero na cor. Em objetos. Quero sentir a casa viva numa casa colorida, enquanto aos olhos de outros, há um excesso pesado de cores. Que não são lidos como eu leio. Casa colorida = Casa com vida. Mas uma casa estranha. E que móveis que mantive e aí admito um quê de nostalgia, tenho mãe e vó perto. Em móveis e peças que foram delas e telas pintadas por vó. E a casa vira um mix do tempo. Deste, traiçoeiro, que não volta mais. E a gente insiste em segurar o fiozinho que nos conecta a ele através de coisas materiais assim

E ninguém compreende.


Então, neste aniversário de 84 anos da minha mãe, faço esta viagem no tempo. E enxergo aquilo que faria mil vezes de novo com ela. E as que eu a pouparia. Desimportâncias que hoje vejo. E que, hoje, sinto. Porque hoje, sou eu, no papel invertido, a mãe com cinquenta e tantos anos. Totalmente fora da regra. Totalmente alheia ao normal. Irreverente e com sede de "lá fora". Mas que sabe bem que este porto seguro faz bem e faz falta. E não importa a roupagem que tenha. E que nestas horas onde o porto está vazio, tudo o que se queria, era voltar no tempo. E ter esta pessoa lá, de novo. Do jeito que ela quisesse ser. Do jeito que fosse. Porque as teorias não tem valor algum se o vivido não for vivido no tempo.